Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André - E.L.C.V.

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09/11/2017
CARTA PARA OS ATORES - Andriy Zholdak


Nestes tempos sombrios vejo os atores cada vez mais embrutecidos e desconectados de sua fonte criativa, com a sensibilidade soterrada e mutilada pela realidade cruel do nosso dia-a-dia de artistas num país que, em vez de nos valorizar como mereceríamos, nos crê vagabundos. Cada dia é mais difícil não ceder a padronizações e fórmulas. Nas escolas de cinema, a mesma coisa: busca-se o que já deu certo, e chega-se ao absurdo de ver no clichê um lugar confiável. Assim, perpetuamos o sistema travado e atrasado que é nossa televisão e cinema... com atuações forçadas, estereotipadas, que não deixam entrar uma fresta de ar fresco, de irreverência, de ousadia e criatividade. Diariamente eu me questiono: como mudar tudo isso? como achar a brecha do sistema? E meu dia-a-dia com os atores é lindo, mas muitas vezes triste, pois a realidade vai nos comendo pelas bordas, e quando nos domesticamos perdemos o melhor de nós. É isso que o sistema quer: domesticar os atores e formatá-los para serem só uma peça no tabuleiro de quem conta as histórias que eles querem que a gente ouça. Mas e as nossas histórias? E outras histórias, outros pontos de vista que não o da Rede Globo/Globo Filmes? E o nosso teatro, sempre mais padronizado e miserável, fazendo concessões muitas vezes até grosseiras em nome do "mercado" e do "patrocínio"? Se você leu até aqui e se interessou, compartilho este texto do diretor ucraniano Andriy Zholdak que esteve na MIT em 2015. Durante a mostra ele realizou uma oficina e então distribuiu para os participantes esta carta, que eu traduzi e apresento a seguir. Ela funciona como uma descarga de choque em nossos corações entorpecidos.

 

Abraços a todos.


 

 

 

CARTA PARA OS ATORES ______________________________________________


Eu entendo... nós não temos um coletivo, não temos um grupo, só existe uma ilusão... a questão está aberta... a primeira variante é se teremos um coletivo. Se não tivermos ou não conseguirmos ter um coletivo, então não será uma performance. E virá o tempo em que vocês irão precisar pensar apenas em si mesmos.


Demora para dar a luz a um coletivo. Hoje o coletivo não existe.


Existem problemas com todos os atores; o problema da falta do coletivo associado à indiferença deles em relação à missão do teatro, a um entendimento diferente do teatro, à diferença entre desejos. Afogado em surdez. Como eu posso transmitir os segredos? Vocês precisam desses segredos? Eu não quero passar para vocês somente a mis en scène e como atuar. Isso é claro. Eu devo transmitir esses segredos, mas vocês têm que entendê-los. Mas eu não sei como transmitir a vocês esses segredos. Eu não sei como. Esses segredos vocês transmitem aos espectadores. E eu não sei se vocês precisam desses segredos.


Seu desejo do material e do texto, ele é mínimo.


No ensaio a sua psique combina dois procedimentos: faça uma coisa, pense outra, diga uma terceira. Sua falta de verdade e reticência é intensa. Vocês estão muito fechados. Seus olhos não podem ver, o coração não pode sentir, sua boca está seca. Suas mãos são firmes, vocês são fortes, são funcionais. Satisfazem os desejos e a vontade do diretor. Vocês não têm alegria, deslumbramento. Nesse ponto vocês estão aqui e agora. Não se deslumbram de modo algum, vocês não têm vida. Não conseguem respirar com seus pulmões inteiros. Seu controle, O controle lógico, cobre tudo, e paralisa tudo. Primeiramente, ele paralisa vocês.


No ensaio vocês não têm sentimentos de tristeza, simpatia, compaixão. Não têm uma reação vibrante, imediata. Onde estão os seus impulsos? Vocês estão num colete apertado. Coletes e rótulos. Vocês não se despem e não me dão chance de retirar, retirar de vocês esse colete pesado. Apenas aprendem de maneira idiota a mis en scène, a ação e o texto, como se pudesse ser um papel. Vocês me olham com reprovação.


Mas cada novo ensaio é uma rejeição do ensaio do dia anterior, das condições do dia anterior. O ensaio de hoje é uma oportunidade de dizer a si mesmos que vocês não sabem. Hoje vocês não sabem. Perdem a relação com a vida no palco. Perdem o imprevisível, não sabem como mudar de ritmo e espírito. Como vocês não têm surpresas, são lógicos e coerentes. Ficam no chamado realismo. Seus olhos não têm surpresa, não têm nenhuma reação para as coisas que veem – esse palco, o cenário, seu parceiro, tudo isso é muito conhecido para vocês. Vocês praticamente não sabem se conectar com o diretor. Como interagir e entrar em um contato profundo comigo. Como conseguir estar em contato sem explicação lógica.

 
O terceiro, o quarto e o quinto olho de vocês não abrem. Terceiro – aqui, o quarto – aqui, o quinto e o sexto estão aqui. Eles não funcionam. Vocês ignoram a existência deles ou a esqueceram por completo. A visão de vocês é limitada. Não tem a circunferência do seu entorno nem do seu interior. Vocês estão inertes. Inércia significa que vocês se movem como todo mundo, como todos.

 
Vocês estão inertes e passivos. Esperam essas ordens e subconscientemente almejam por essas instruções: como existir, o que fazer. Vocês têm em suas veias sangue frio, sangue gelado. E eu preciso bater em suas mãos em cada ensaio, esquentar suas veias, esquentar seu sangue. Preciso que vocês sofram incisões nas mãos, nas veias, que fiquem com medo e alertas, e sintam quão quente é o seu sangue. O sangue que vocês vão começar a derramar de suas veias diminuídas. Vocês não têm nenhuma excitabilidade.


Seus instintos dos belos animais selvagens estão cegos. Vocês estão bem nutridos, prósperos, ficam equilibrados e confortáveis. Apegam-se amedrontados`a esse equilíbrio e conforto. Ficam nas condições de pessoas normais, de pessoas comuns. Vocês não têm em suas mãos e pés as patas de um gato no momento em que ele quer se lançar sobre uma presa.

 
Seu instinto de ataque está enfraquecido. Seu instinto de prazer também se enfraqueceu, seu instinto de sexualidade e seus desejos sexuais estão fracos. Vocês estão muito civilizados e normais. Não sabem ou esqueceram o que é o tremor, a convulsão, a dor da facada, o impulso selvagem. Esqueceram como e onde os sentimentos reais chegam e nascem. Vocês estão fechados dos seus sentimentos, estão com medo desses sentimentos, fogem desses sentimentos. Fogem da verdade dentro de si; vocês estão longe.


Vocês se perdem. Não têm o desejo de se rebelar.

 
Vocês têm segredos e são amigáveis culturalmente, mas ao mesmo tempo estão tanto quanto possível cobertos pela máscara e a distância entre nós. Vocês são previsíveis. Suas mãos e seus olhos expressam falsa sinceridade. Vocês estão vazios. Estão cansados. Com medo. Vocês são como gatos e cachorros castrados que perderam seus instintos e desejos. Não têm distúrbios de psique. Não ficam no limite da condição humana e animal.


Vocês estão tomados pela tranquilidade, pela precisão e pela vontade de fazer e repetir com grande cuidado as coisas que já fizeram antes. Quando eu fico muito tempo entre vocês, com vocês, então observo sua calma, sua fraqueza, sua suavidade; elas penetram em mim. Vocês envenenam o ar ao redor de vocês, sujam outros atores ao redor de vocês, atores que estão sentindo.


Vocês os tornam normais pela sua respiração venenosa. Sua irradiação é mínima. A palavra “hipnose” não é conhecida de vocês, e é proibida. No momento em que lhes falta talento, vocês se unem muito rápido e se tornam pilares de pedra. São esses pilares que eu combato; vocês são substâncias impenetráveis. Perderam a feminilidade, a masculinidade. Suas palavras dos textos estão vazias. Vocês tentam dar a essas palavras... vocês tentam dar a essas palavras algo de seu, como se fossem suas. Mas o que vem de vocês são mentiras venenosas, essa inverdade encobre, esconde o seu conforto, a sua conformidade e a sua indiferença.


Seus textos estão vazios. Eles me fazem lembrar as cavernas de rocha dos povos antigos que ainda não tinham descoberto o fogo. Vocês são melosos. São medrosos. E falsos. Trabalham por inércia, forçados, como se alguém os tivesse forçado a trabalhar.

Trabalham como quem trabalha pesado nas pedreiras. E estão esperando a sirene do almoço e da parada. Vocês esqueceram que o primeiro ator na terra foi Prometeu, que ameaçou os deuses e roubou a luz da festa dos deuses? Ele roubou a luz para as pessoas. Arrancou seus próprios olhos, pôs neles o fogo, então os recolocou no lugar e se deslocou por uma grande distância até a Terra. Foi uma longa jornada até a Terra, onde as pessoas viviam no escuro. Ele lhes deu essa luz, esse fogo.


O ator é a criatura que dá, que acende e sustenta as luzes dentro das pessoas no mundo; sustentar as luzes dentro das pessoas no mundo dá a elas o desejo de viver. Os atores dão às pessoas notícias sobre como viver melhor. E eu certamente me rebelo contra vocês. Recorro à ajuda de Prometeu. Vocês se esqueceram do seu pedigree. Quando vejo vocês, quando fico perto de vocês, eu sinto que vocês extinguem o fogo que há dentro de mim. Vocês jogam água nas chamas.


Vocês não têm o sentimento de salvação e previsão. Sua perspectiva é absolutamente distorcida. Vocês não veem que estão num navio e o navio joga de um lado para outro. Nós estamos num mar tempestuoso. Mas suas mãos estão moles, suas ações são incompreensíveis. Vocês perderam o sensibilidade dos descobridores. São como os marinheiros de Colombo, cansados de nadar. Querem uma costa e um descanso. Mas não existe espaço para respirar. O que há é uma luta pela sobrevivência, a luta entre a verdade e a não-verdade. A luta entre vida e morte. E esses surtos, esses clarões de relâmpagos que caem de um céu escuro sobre esse navio, esses clarões do Artaud louco, eles iluminam para mim, eles reforçam para mim seus rostos confusos e seus olhos indiferentes.


O Van Gogh ferido ou o Beethoven surdo não chega a vocês em seus sonhos.

 
Eu bato em seus corações petrificados e calmos. Apelo para o seu entendimento. Tenho que ensaiar com vocês todo dia como se fosse o último da minha vida. Preciso acelerar e pular e lutar contra a parede, contra a sua grande parede; para provar a vocês e fazê-los descobrir que podemos sair da terra; que somos formigas voadoras e pássaros.


Vocês são semideuses, como está escrito nos livros antigos. Que vocês não façam apenas seu trabalho como funcionários que trabalham para instituições como o Deutschbank. Vocês não são como eles, não são como eles, como eu posso lembrá-los disso?


Vocês foram escolhidos, foram marcados, vocês são especiais, são oráculos e pregadores. São a substância que têm as criaturas honestas e selvagens, abertas e famintas. Vocês amam e são amados. Não são feitos de plástico, mas do sangue vermelho que fica dentro de vocês e que lhes dá os instintos da vida verdadeira. Como eu posso fazer-lhes se lembrarem de que vocês são generosos e gentis, que seus corações batem e estão fartos de todas as pequenas feiuras e injustiças. Vocês são os defensores da beleza interior do ser humano, vocês – profetas. Vocês esconderam e preservaram os ideais, e os seus desejos são muito fortes. Vocês estão no meio da batalha entre o bem e o mal, entre o limpo e o sujo. Agora depende de vocês, agora, depende de vocês tantas coisas, e tanto.

 
Vocês estão conectados diretamente com os espíritos, os espíritos dos mortos.


Trabalham também com alucinações e fantasmas de personagens. Estão em contato com as sombras e a emissão cerebral do autor. São parte do impulso e continuação de Tchekhov, Dostoievsky, Ibsen, Shakespeare.


Vocês não são chacais, que comem tudo o que lhes dão. Vocês devem recusar ensaios ruins. Não devem comer carcaças estragadas. Vocês têm dentro de si a cada minuto, a cada segundo, a seleção moral entre o bem e o mal. São responsáveis por tudo o que está acontecendo agora com a humanidade. Vocês são parte dessa humanidade. Hoje a humanidade pode cair.


E ela está caindo. E nós, todos nós, não podemos ficar de lado e fingir que nada está acontecendo. Que isso não nos diz respeito. Vocês não são seres que falam sem parar, são videntes. Seu jogo deve ser moderno, imediato, apaixonado, intenso e honesto, forte e resistente, como a vida real. Vocês estão cansados. Perdem a conexão com o tempo. Estão doentes. Estão em perigo. Vocês estão em perigo.


 

Traduzido por Luciana Canton e revisado por Maria Cristina Guimarães Cupertino.

 



 

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