O cineasta LuisBuñuel escreveu uma bela frase acerca da memória: “É preciso começar a perder a memória, ainda que se trate de fragmentos desta, para perceber que é esta memória que faz toda a nossa vida. Uma vida sem memória não seria uma vida, assim como uma inteligência sem possibilidade de exprimir-se não seria uma inteligência. Nossa memória é nossa razão, nossa AÇÃO, nosso sentimento. Sem ela não somos nada”. Esse texto pretende revelar parte de uma memória individual a partir de 3 fragmentos (espacial, processo e emocional) durante a formação de três anos na Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André (ELCV).
Da memória Espacial
Em Agosto de 2006 ingressei na Turma 3 da ELCV, vislumbrava adquirir repertório estético e técnico, algo que a formação de dois anos em Produção Audiovisual (em uma das “UNI” da vida) não supriu. O Semestre começou com aulas de Produção, Fotografia, Roteiro, História da Imagem, Direção e Som – o que a principio sanou as minhas expectativas. O que eu não esperava era a descoberta de um lugar, um espaço, uma casa, um cinema de rua tombado e abandonado. O cine-teatro Carlos Gomes.
Esse lugar de muita história e atualmente luta, foi palco das minhas primeiras experiências estéticas, políticas e emocionais relacionadas ao cinema. O Carlos Gomes tinha tudo para ser inóspito (era abandonado, o palco e plateia estavam interditados e as nossas aulas ocorriam no Saguão – ainda sinto o cheiro do café da Cris e o aroma da fumaça dos cigarros - naquele período era permitido fumar durante as aulas). O cinema decadente se tornou um ambiente familiar para mim. E no que diz respeito a turma 3 aquele lugar foi explorado de todas as formas, nenhum lugar ficou ileso de ser cenário dos nossos exercícios/filmes. O palco virou casa, o vestiário virou quarto, a sala de projeção virou prisão, o saguão virou sala, a cozinha virou outra cozinha, a sala administrativa virou delegacia, o corredor virou hospital... Foi a primeira vez que um espaço, cada pedacinho de tijolo e poeira espalhada contribuiu com a construção da minha formação e para além, da minha identidade.
Da memória do processo
Durante o curso, contamos com diversos profissionais (não pretendo citar nomes para não correr o risco de ser traída pela memória) que ampliaram o nosso olhar acerca do universo cinematográfico e compartilharam suas experiências, não somente na sala de aula e fora dela nos exercícios práticos, mas também muitos deles nos acompanharam na mesa de bar e nos nossos projetos dentro e fora da ELCV. O corpo docente e coordenação da Escola dialogavam diretamente com os alunos, e permitiram a construção de uma Escola com perfil democrático e participativo, vivenciávamos uma certa utopia, a possibilidade de escolher nossa grade de aula/educadores através de votação, as discussões acerca de regras de convivência – nessa época em uma reunião entre alunos, professores e coordenação foi vetado fumar durante as aulas - , o orçamento, a relação Escola X Prefeitura tudo nos era exposto. Não que a Escola fosse mil maravilhas, a turma 3 iniciou sua trajetória com 50 alunos e apenas 1 câmera PD , uma hand-cam, uma Hi-8, alguns refletores e difusores, enfim não podíamos dizer que era uma Escola bem equipada. Mas o aprendizado político e social foi o que resultou na formação de grupos e coletivos, e foi o que motivou a vontade de realização, com o pouco que tínhamos fazíamos filmes. Não nos foi ensinado somente o fazer e pensar cinema, fomos instigados a pensar sobre a horizontalidade no ensino, a pensar sobre uma Escola LIVRE.
Da memória emocional
A experiência na Escola Livre de Cinema e Vídeo permeia o meu cotidiano 05 anos após a minha formação. É raro o dia que eu não a cite, mesmo sem citá-la e que eu não a enxergue mesmo estando há muitos quilômetros de distancia. Atualmente estou na fronteira do país – e é só olhar ao lado, o meu companheiro de casa era também integrante da turma 3. As visitas que recebemos de longe, cada uma delas (e foram muitas) percorreram o lugar, o espaço, a casa, o cinema de rua tombado e abandonado. A base das minhas amizades e da minha trajetória profissional nasceu no cinema estrela cadente. A Corja Filmes, o cinema de guerrilha, os filmes da minha vida, os porres, o amor pelo cinema, a desilusão pelo cinema, a política cultural, o questionamento do ensino acadêmico engessado e vertical, a grande maioria dos caras que peguei, grande parte daquilo que eu carrego é fruto da ELCV. Esse não é um texto sobre ou a respeito. É um texto do quanto eu guardo e carrego o que a Escola me trouxe/trás. Por revelar o eu e o ao redor. Finalizo com um poemade Antonio Cícero, acerca da memória:
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Lumas Reis